O Castelo Animado e A Viagem de Chihiro não fazem sentido. Suas lógicas internas são incertas. As regras de seus mundos são inconstantes. O que uma pessoa vê na outra é um mistério. Nada faz muito sentido. Ainda bem.

O Castelo animado entre as montanhas

Em O Castelo Animado, uma chapeleira solitária é amaldiçoada e assume a forma de uma senhora de noventa anos. Ela foge para as Terras Devastadas, uma região longe da sua cidade, em um país que está em guerra com outro. Lá ela conhece Howl, e seu Castelo Animado. Ela forma uma família dentro daquele castelo, descobre a verdadeira natureza de seus sentimentos. Se apaixona, cruza dimensões, revela a verdadeira forma de um demônio e de um espantalho. Ela acaba se apaixonando por Howl, e ele acaba se apaixonando por ela também.

Não é o que acontece em O Castelo Animado que importa — mas como acontece. Sophie descobre que seus sentimentos importam, e que deve confiar neles. É uma lição simples, mas que reverbera a ponto de influenciar uma guerra inteira, a guiar um grupo de pessoas a formarem uma família. É um filme gigante — ele se extende em horizontes distantes, múltiplas cidades e linhas do tempo que se chocam. No centro de tudo isso, porém, está Sophie, que aprende a lidar com cada um dos sentimentos que ela aprendeu a reprimir — sua curiosidade, sua determinação, sua paixão. Todo esse mundo vasto e incerto vai ficando mais lindo conforme ela mesma vai se reconectando com seus sentimentos. Faz sentido porque o que Sophie sente faz sentido.

Chihiro olha um bonde passando no meio do mar durante a noite

A Viagem de Chihiro é uma obra-prima. E não faz sentido nenhum também: Chihiro e seus pais estão se mudando para uma nova cidade. Eles acabam cruzando o limiar e entrando no mundo dos kami. Os pais de Chihiro se comportam mal, e viram porcos. Para salvá-los, Chihiro precisa trabalhar para a bruxa Yubaba em sua casa de banhos.

As regras do lugar são incertas desde o início, e sempre que você acha que pegou o jeito, elas mudam. Mas Chihiro também muda. No início do filme, Chihiro mal sabe tudo o que está sentindo — ela está irritada de deixar os amigos pra trás, e o medo toma conta dela de tal maneira que ela mal consegue descer os degraus da escada que levará ela até o Kamaji. Quando ela toma a iniciativa de ajudar uma das fuligens a terminar seu trabalho, ela é movida pelos mesmos sentimentos grandiosos que ela sentia antes — compaixão, curiosidade, um pouco de medo. Mas ela age sobre eles, e então ganha a confiança do Kamaji. Ao usar seus sentimentos para guiar sua jornada, Chihiro vê seus colegas na casa de banho respeitando-a cada vez mais. Chihiro tem uma missão — duas, quando o filme acaba —, e sua determinação muda tudo dentro dela.

Muito de A Viagem de Chihiro é incompreensível. Por que as pernas de Chihiro param de funcionar? Por que o bebê de Yubaba é gigante? O que faz o selo de Zeniba? O filme passa por essas perguntas muito porque segue a lógica de um conto de fadas, que geralmente deixa mais dúvidas do que respostas em seu caminho; mas também passa por elas porque A Viagem de Chihiro tem confiança total em sua protagonista. Ela segue em frente em meio à essa incerteza toda. Não por falta de interesse, mas porque ela tem uma missão a cumprir. A menina que mal caminhava sem estar sendo carregada pelos pais anda descança pelos trilhos submersos no mar para pedir à uma bruxa a alma de seu amado de volta.

Todo A Viagem de Chihiro é perfeito, mas eu não consegui segurar a emoção quando Chihiro, Boo, o passarinho e o Sem Rosto pegam o trem e cruzam esse mundo de melancolia e solidão. As notas do piano na trilha de Joe Hisaishi parecem o vento noturno nas janelas do trem. Não tem sequência mais linda no cinema. Muito do que acontece ali é misterioso também. Tem a sombra de uma garota sozinha em uma estação de trem. Quem ela está esperando?

Nada disso faz sentido em A Viagem de Chihiro, mas tudo o que Chihiro sente faz. Desespero, medo, fascinação, confusão. E os filmes de Miyazaki são guiados pelos sentimentos de seus protagonistas, muito mais do que lógicas narrativas e arcos dramáticos. Seus vilões são temporários, as estruturas são impermanentes, e muitas vezes já viraram ruínas. Reinos e guerras mudam e acabam. Seus personagens tem apenas seus sentimentos como guia, e como companhia nesse mundo. São seus sentimentos que eles aprendem a entender e confiar. Não há um sentimento ruim — nem o medo, nem o desespero, são fúteis. Como as colinas gramadas gigantescas, os horizontes distantes, a mitologia incerta, os voos triunfais e a trilha de Joe Hisaishi, essa é uma das constantes do cinema de Hayao Miyazaki. E é o vento norte de sua obra-prima. Absurdamente mágico.