Vivi: cinco anos com, seis anos sem
Hoje completam seis anos da morte da Vivi. A partir de hoje, o tempo que eu sinto saudades da Vivi é maior do que o tempo que eu tive perto dela. Foi a primeira coisa que eu pensei quando acordei.
A chegada da Vivi na nossa casa começou com tristeza. Por semanas, ela viveu na frente do nosso pátio, embaixo de um caminhão estacionado na frente da casa de um vizinho. Eu lembro de ter ido lá mais de uma vez dar comida pra ela. Um dia, nós demos comida para ela dentro do nosso pátio, e fechamos o portão. Naquela noite, Vivi conseguiu furar a cerca e fugir pro pátio do vizinho, onde os cachorros dele a atacaram, quebrando sua coluna. Eu lembro de ouvir um barulho de briga durante a noite, mas não juntei os pontos. Tem sempre alguma intriga canina na vizinhança.
Vivi ficou em um dos quartos da casa, onde bate sol e é bem iluminado, e minha mãe a ajudou a se apoiar nas patas dianteiras nos dias seguintes. Ela reaprenderia a caminhar em algumas semanas, e um vizinho nosso iria lá em casa com uma cadeirinha de rodas feita de canos de PVC. Foi durante esses dias, com a Vivi ainda no quarto, que ela ganhou o nome. Minha mãe pensou em Vitória. Virou Vivi.
Eu lembro muito da Vivi desde que ela morreu. Eu já falei sobre esse dia aqui. Dói demais pensar nele, e no meu envolvimento naquele dia. Nada me tira da cabeça que a roupa que eu coloquei nela naquela noite, alguns dias depois de ela ter feito uma cirurgia, estava apertada demais. Pra mim, desde então, eu matei a Vivi.
Mas Vivi viveu uma vida inteirinha. Quando ela aprontava, virava Viviane. Ela fazia uma expressão afrontosa quando a gente xingava ela. Eu acompanhava ela no banheiro antes de dormir (desde o acidente, como eu chamei aquela noite, ela não conseguia mais se segurar). Durante aqueles anos, eu dormi com o colchão no chão. Eu podia colocar a mão dentro do berço dela até ouvir ela roncar (e, leitores, ela roncava). Por muitos anos depois dela, meu colchão continuou no chão.
Eu gosto de lembrar do meu último ano da faculdade quando eu lembro da Vivi. Eu tinha aulas presenciais só uma vez por semana, e nos outros dias eu trabalhava e escrevia o trabalho de conclusão, o que eu tentava deixar para a manhã. Durante as tardes, eu e minha mãe sentávamos na sala com a Vivi e assistíamos séries e filmes. Foi quando a gente maratonou The Wire e Hannibal, acompanhamos a última temporada de The Leftovers ou passamos uma tarde inteirinha assistindo The Keepers. Um de nós sempre sentava no chão, o braço dentro do bercinho da Vivi enquanto ela tirava a soneca da tarde.
Nos dois anos seguintes, quando eu voltei a trabalhar como desenvolvedor, eu usei o quarto vago em que Vivi ficou até se recuperar como um escritório. Durante horas, Vivi ficava lá, deitada no sofá por um tempo, depois apoiada no meu pé. As vezes ela enchia o saco de me esperar e ia para a rua sozinha, na cadeirinha dela, para brigar com os cachorros do vizinho. Ela nunca perdeu a coragem.
Nos últimos meses, quando sua saúde foi piorando, eu gostava de passar os fins de tarde com ela explorando o pátio. Eu saía pouco do quarto naquela época, mas era ela quem me levava. Todos os dias. Eu amei ela tanto.
Eu sonhei com a Vivi há uns dias. Eu sonhei que eu chegava na casa dos meus pais em um dia de sol. Acho que era na época que eu ainda trabalhava no escritório, porque eu chegava de carro com meu pai. Minha mãe me deu oi e só me disse “ela tá lá embaixo”. Eu sabia instintivamente quem era. Eu desci as escadas e, embaixo da laranjeira, estava a Vivi, a cadeirinha de um lado, Mel de outro. Eu sentei perto dela na grama e lembrei que ela tinha morrido, e percebi que aquilo era um sonho. Eu acordei e, pela primeira vez em muitos, muitos anos, eu lembrei de como foi viver com a Vivi, ao invés de lembrar de como ela morreu.
